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    A 
        VARIEDADE DA PRÁTICA  
        Do tipo clínico ao caso único em Psicanálise 
      Diante de classificações 
        que se vinculam a protocolos diagnósticos e escalas de avaliação, 
        dispensam a teoria ou vão aplicá-la de maneira automática, 
        a prática psicanalítica re-introduz o ato de julgar, não 
        universalizável. Buscamos, em cada caso particular, os detalhes 
        e os princípios que possam orientar o diagnóstico e dirigir 
        o tratamento, pois sabemos que as classificações têm 
        algo de relativo e artificial. Para Jacques-Alain Miller, as classes não 
        existem na natureza, tampouco no real, mas são fundamentadas na 
        verdade . Se a verdade varia, como aponta Lacan com seu neologismo “varité”, 
        as classes estão sujeitas a esse amálgama da verdade com 
        a variedade, ou seja, à “varidade” decorrente dos discursos 
        correntes, das descobertas da ciência, etc.  
         
        Freud já era sensível à tensão existente entre 
        o tipo de sintoma e a particularidade de um caso que nos permitiria tomá-lo 
        como único, sobretudo ao compará-lo com uma classe já 
        consagrada na clínica: a propósito de um caso de paranóia, 
        interroga se ele contradiz sua teoria segundo a qual o perseguidor pertenceria 
        ao mesmo sexo que o paciente2. 
        Mesmo se Freud acaba demonstrando a inclusão desse caso em sua 
        teoria sobre a paranóia, deixa em aberto a possibilidade, verificada 
        cotidianamente na prática, de que um caso particular possa contrariar 
        o que é típico, assim como uma intervenção 
        analítica é avessa a uma prescrição padronizada, 
        standard. Essa abertura da prática freudiana, já tão 
        lacaniana, é especialmente evidente na clínica do sintoma: 
        o sujeito se constitui como exceção à regra e seu 
        sintoma é a invenção da regra que lhe falta. Há 
        sintomas típicos mas, como já notava Freud, o sentido de 
        um mesmo sintoma é diferente em sujeitos diferentes e está 
        articulado às experiências individuais de cada um3. 
         
        Na Psicanálise de orientação lacaniana, ir do tipo 
        clínico ao caso único pode se referir à passagem 
        da “clínica estrutural”, bastante compatível 
        com a articulação entre “estruturas clínicas” 
        e “tipos de sintomas”, à “clínica do sintoma”, 
        na qual se destaca o caso único como um “inclassificável”, 
        aquele cuja amarração, inventada no tratamento, interroga 
        e faz avançar a Psicanálise, para além das classes 
        já consagradas, graças às surpresas experimentadas 
        na prática clínica. Não se trata de descartar os 
        “tipos clínicos” construídos anteriormente, 
        mas de mostrar que, de modo paradoxal, a exceção é 
        a regra, ou seja, um caso jamais realiza o seu tipo e, por isso, poderá 
        ser considerado único. A prática clínica também 
        poderá criar novos tipos e, como exemplo, temos a invenção, 
        por Lacan, da “paranóia de autopunição”: 
        se o que caracterizava o sujeito paranóico clássico era 
        a inocência alegada em seu delírio, Lacan toma um caso como 
        exceção, como caso único, para construir um novo 
        tipo clínico, no qual a passagem ao ato retorna sobre o sujeito 
        como autopunição4. 
        Logo, a prática analítica pode autorizar-nos a fazer de 
        um caso único um novo paradigma, um novo tipo de sintoma. 
         
        O modo como Lacan retoma, na “Introdução à 
        edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”, 
        a questão do diagnóstico na clínica psicanalítica 
        implica um questionamento da epistemologia classificatória de inspiração 
        estruturalista. O que deriva da estrutura, ou seja, os tipos clínicos, 
        não tem forçosamente o mesmo sentido: tipos de sintoma equivalentes 
        podem ter sentidos radicalmente distintos, o que justifica que a Psicanálise 
        se apresente como “ciência do particular” e que se interesse 
        pela formalização do “caso único”. “Os 
        sujeitos de um tipo não têm utilidade para os outros do mesmo 
        tipo”5, 
        diz Lacan, e é possível que tal variabilidade do sentido 
        tenha possibilitado o advento da perspectiva continuísta na clínica 
        lacaniana, valorizando menos as oposições do que as gradações 
        entre os tipos de sintomas: “há tipos de sintomas – 
        quer dizer, de nós”, dirá Lacan no seu “Autocomentário”6. 
         
         
        Se a “primeira clínica de Lacan”, descontinuísta, 
        utiliza o Nome-do-Pai como elemento ordenador do sistema, permitindo o 
        advento da significação e as classificações, 
        Lacan, em sua “segunda clínica”, pautada pelos nós, 
        privilegia maneiras de atar, utilizando o pai como um conector do sentido 
        com o real do gozo. A prática dessa clínica dos nós 
        acrescenta à formalização da clínica estrutural, 
        classificatória e, portanto, descontinuísta, uma outra, 
        borromeana, categorial e, portanto, continuísta. O Nome-do-Pai 
        passa a ser, por conseguinte, um equivalente do aparelho do sintoma, concebido 
        como uma maneira própria de nomear o ser de gozo do sujeito, ou 
        seja, o que do real depositou-se sob a forma do objeto a. Nomear é 
        portanto diferente de classificar: a clínica do sintoma deixa em 
        aberto a possibilidade de inventarmos novos tipos de sintoma e, assim, 
        a variedade da prática vai do tipo clínico ao caso único 
        e dá origem a novos tipos clínicos.  
         
        O caso único é compatível com o individualismo contemporâneo, 
        no qual o sujeito resiste às iniciativas de ser enquadrado e classificado. 
        A redução das classes ao que Lacan chamou de “semblante”, 
        ao que faz às vezes de uma outra coisa, não deixa de trazer 
        conseqüências importantes para a Psicanálise, porque 
        dá lugar a um sujeito que escapa às regras e classes pré-estabelecidas. 
        Enquanto o animal realiza sua espécie como exemplar, o ser falante 
        é sujeito porque, por mais que pertença a uma classe, jamais 
        será um exemplar adequado dela. O sujeito é, segundo Miller, 
        essa disjunção que faz com que o rouxinol de Keats seja 
        o mesmo que o rouxinol de Ovídio e de Shakespeare, embora Keats 
        não seja Ovídio, nem Shakespeare. Quando apontamos para 
        o sujeito, introduzimos a contingência e a surpresa, pois o caso 
        único será sempre, em maior ou menor grau, uma exceção 
        à regra de uma classe. 
         
        Aí está a riqueza de possibilidades abertas pelo tema do 
        3º Encontro Americano e do XV Encontro Internacional do Campo 
        Freudiano: que cada um possa demonstrar como pratica a Psicanálise, 
        o que faz diante do impossível de tratar e como extrai o sujeito 
        das classificações padronizadas para permitir-lhe encontrar, 
        a partir da contingência, um sintoma como solução 
        única que poderá, ao ser nomeado, ser transmitido como um 
        grão de invenção. 
         
        EIXOS TEMÁTICOS PARA TRABALHOS A SEREM 
        SELECIONADOS   
      I - O inclassificável ou “isso não 
        é um diagnóstico” 
        Na variedade da prática psicanalítica de orientação 
        lacaniana, o encontro com um “caso único” fora das 
        classes de diagnóstico já consagradas, permite-nos tematizar 
        o que é “inclassificável”. Entretanto, por que 
        esse termo não compõe, propriamente, uma nova categoria 
        de diagnóstico? Por que, ao contrário do que se poderia 
        pensar, o “caso único” como “inclassificável” 
        nada deve à categoria psiquiátrica do borderline? 
       
      II – Tratamento do tipo clínico 
        como caso único 
        O anoréxico, o bulímico, o toxicômano, o hiperativo, 
        o desatento, o deprimido, o bipolar, o que fracassa na escola, o infrator 
        foram consagrados, entre vários outros, como “tipos clínicos” 
        em nossa contemporaneidade. Eles podem ser detectados, avaliados e tratados 
        por várias práticas terapêuticas e atingem cada vez 
        mais uma grande variedade de faixas etárias. Trata-se, portanto, 
        de demonstrar como a Psicanálise de orientação lacaniana 
        pode se diferenciar com relação a essas práticas, 
        ao privilegiar o que há de único em cada sujeito tomado 
        por um ou mais desses tipos clínicos. 
      III – Variedade dos sintomas, unicidade do 
        tipo clínico 
        Quando um modo de satisfação pulsional não se deixa 
        orientar propriamente pelos parâmetros definidos pelo Nome-do-Pai 
        e pela norma fálica, a prática psicanalítica se depara 
        com uma grande variedade dos sintomas. É o que encontramos, por 
        exemplo, nas psicoses, mas também, de modo menos dispersivo, em 
        certos acontecimentos de corpo próprios à sexualidade feminina, 
        à toxicomania, ou em algumas formas de infração e 
        de violência. Como impedir que essa variedade de sintomas se perca 
        em um relativismo classificatório pouco eficiente na prática 
        e inconsistente na teoria, por exemplo, quando se recorre à noção 
        de co-morbidade? É possível criar um tipo clínico 
        a partir do tratamento de um caso único sem que suas particularidades 
        sejam sacrificadas? 
      IV – Quando a psicanálise não 
        segue o que lhe é historicamente típico: os novos Centros 
        de Atendimento Psicanalítico 
        Ao longo do século XX, a psicanálise se consagrou como uma 
        prática na qual se paga pelo tratamento recebido e que, em geral, 
        dura muito tempo. No início do século XXI, numa perspectiva 
        que se quer diferente, tanto da prática assistencialista, quanto 
        das chamadas “terapias breves” e do “pronto-socorro”, 
        a Psicanálise de orientação lacaniana tem dado lugar 
        à criação de Centros de Atendimento marcados pela 
        gratuidade, pela produção de “efeitos terapêuticos 
        rápidos” e por um acolhimento das chamadas “urgências 
        subjetivas”. O que acontece nesses Centros e como eles dão 
        mais rigor à variedade da prática psicanalítica sem 
        desviar dos princípios que norteiam a clínica lacaniana? 
       
      1Cf. 
        MILLER, J.-A. El ruisenor de Lacan, in Del Edipo a la sexuación, 
        BsAs, ICBA. 
        2Cf. 
        a este respeito COTTET, S. Lacan médiéval, in Barca! 8, 
        Paris, mai 1997, p. 40-41, e FREUD, S. Um caso de paranóia que 
        contraria a teoria psicanalítica da doença, in ESB XIV, 
        RJ, Imago, 1969, p. 297-307. 
        3Cf. 
        FREUD, S. O sentido dos síntomas, in ESB XVI, RJ, Imago, 1976, 
        p. 319-321. 
        4Cf. 
        LACAN, J. Da Psicose Paranóica em suas relações com 
        a personalidade, RJ, Forense-Universitária, 1987. 
        5LACAN, 
        J. Introdução à edição alemã 
        de um primeiro volume dos Escritos, in Outros escritos, RJ, Zahar, 2003, 
        p. 554. 
        6Idem, 
        Autocomentario, in Uno por Uno 43, Bs As, Piadós, 1996, p. 18. 
       
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