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    O Inconsciente Real  
         
        Jacques-Alain Miller1 
         
        Resumo: Nesta primeira aula de seu Curso de 2006-2007, Jacques-Alain 
        Miller apresenta duas facetas do conceito freudiano de inconsciente destacadas 
        e trabalhadas por Lacan: o inconsciente transferencial e o real. O primeiro 
        é o inconsciente mobilizado e lido a partir da transferência que o causa 
        e da articulação ao sujeito suposto saber; é sustentado pela ligação entre 
        S1 e S2. O segundo nega o primeiro pois se está nele quando o espaço de 
        um lapso não produz sentido ou interpretação. Este inconsciente real é 
        exterior ao sujeito suposto saber, homólogo ao traumatismo e formulado 
        como um limite. 
        Palavras-chave: Inconsciente transferencial; inconsciente real; 
        sinthoma.  
         
        Abstract: In the first class of his Course in 2006-2007, Jacques-Alain 
        Miller presents two aspects of the Freudian unconscious assigned and developed 
        by Lacan: the transferencial unconscious and the real one. The former 
        is the unconscious produced and read by the transference as long as it 
        is articulated to the subject supposed to know; it relies on the connection 
        between S1 and S2. The latter denies the former since one is in it when 
        the space of a lapse does not produce meaning or interpretation. This 
        real unconscious is external to the subject supposed to know, homologue 
        to the traumatism and formulated as a limit. 
        Key words: transferencial unconscious; real unconscious; sinthome. 
         
        1. O traumatismo Freud  
         
        Dicência2 
        (disance) lacaniana 
         
        A perspectiva que lhes trago, hoje, tem seu ponto de partida a posteriori3. 
        Inopinadamente, o que não quer dizer de modo inoportuno, ainda que isto 
        os tenha importunado, eu me vi marcando no ano passado, por três vezes 
        e de maneira não dissimulada, a distância que eu tomava, ou melhor, que 
        se tomava, entre este eu (je) que lhes fala e a dicência 
        lacaniana4;. 
       
        distância & dicência 
       
        Eu disse dicência. Essa não é uma palavra que eu tenha forjado, 
        mas sim um termo introduzido por Damourette e Édouard Pichon em seu Essai 
        de grammaire de la langue française5, 
        do qual Lacan o tomou. Aliás, ele teve um relacionamento pessoal com Édouard 
        Pichon que, além de gramático, era psicanalista e acolheu favoravelmente 
        o jovem Lacan nesse meio, dedicando-lhe um artigo em que deplorava, já 
        naquela época, seu caráter incompreensível6. 
         
        A dicência é “a língua tal como falada pelas pessoas de um dado 
        ofício”. Quanto aos hábitos profissionais, nossos autores fazem esta sensata 
        observação: “Os termos técnicos que designam atos, ferramentas, produtos 
        de um modo de atividade humana são freqüentemente ignorados pela maioria 
        das pessoas”7. 
         
        Digo dicência lacaniana porque essa língua me parece, hoje, 
        ter uma extensão suficiente para que lhe poupemos o nome de jargão, 
        mais pejorativo. Um jargão é a língua falada por um destes meios “que 
        recorrem, seja por interesse, fantasia, ou tradições particulares, a certas 
        construções frasais ou a vocábulos incompreensíveis para os não-iniciados8”. 
         
        A distância da dicência lacaniana na qual eu me encontrava 
        num certo momento foi suturada no ano passado, uma vez que - vocês são 
        testemunhas - retomei meu ramerrame que nos levou, até o final do ano, 
        através do Seminário: de um Outro ao outro9. 
         
        Se relembro essa distância da dicência em que eu me encontrava 
        é porque, definitivamente, ela me é preciosa e gostaria agora de fixar 
        nela minha posição para este ano.  
         
        A propósito, digo a mim mesmo: talvez eu tenha estado desde sempre, sem 
        o saber, nessa distância da dicência e talvez esse seja o segredo 
        do que chamam minha clareza –é o que me chega de fora –, que seria devida, 
        em última instância, ao fato de eu me esforçar para não me deixar levar 
        pela dicência dos psicanalistas e também porque, à distância da 
        dicência, deixo a Lacan a responsabilidade de seu dizer, o traço singular 
        de seu dizer que é sempre amortecido na dicência. 
         
        Reação e resposta Lacan formulou, assumiu sua singularidade de 
        maneira evidentemente enigmática quando disse, em seu Seminário: o 
        sinthoma: “É pelo fato de Freud ter verdadeiramente feito uma descoberta” 
        – supondo essa descoberta como verdadeira - “que se pode dizer que o real”, 
        a categoria do real da qual trata o Seminário, “é minha resposta 
        sintomática”10. 
         
         
        A descoberta suposta verdadeira, no caso, é o inconsciente. Lacan diz 
        também: “Digamos que é pelo fato de Freud ter articulado o inconsciente 
        que reajo a ele”11. 
         
         
        O real seria assim uma reação de um, de um só, à articulação freudiana 
        do inconsciente.  
         
        As duas palavras são ditas: reação e resposta. A resposta é sem dúvida 
        de uma ordem mais complexa do que a da reação. Mas talvez este seja o 
        termo menos significativo pelo fato de que Lacan ali está, se supõe estando, 
        num traumatismo.  
         
        Como entendê-lo? Da seguinte maneira, é simples: a descoberta de Freud 
        faz furo no discurso universal. Pelo menos essa foi a perspectiva adotada 
        por Lacan, de saída, no que concerne a Freud.  
         
        E o que convencionalmente chamamos o ensino de Lacan constitui, 
        em seu conjunto, uma resposta a esse furo. Sob modos variados, Lacan não 
        cessa de demonstrar que essa descoberta não tem alojamento em nenhum outro 
        discurso que a precedeu. Foi esse furo no universal - perspectiva tomada 
        por Lacan em relação a Freud – que o precipitou na elaboração múltipla 
        do discurso analítico, suplementar, a fim de dar moradia à descoberta 
        de Freud.  
         
        Lacan falou do acontecimento Freud, assinalando com esse 
        termo o corte introduzido por Freud, o que dele pôde se expandir. Eu, 
        porém, falaria de bom grado do: traumatismo Freud. 
         
        O acontecimento Freud foi - Lacan a ele retorna muitas vezes, a cada uma 
        de suas viradas e reviradas -, de saída, desconhecido, tamponado, a ponto 
        de Lacan poder dizer que a famosa peste, na verdade, se revelara “anódina. 
        Ali aonde ele [Freud] supunha levá-la” – os Estados Unidos – “o público 
        se arranjou com ela”12. 
         
        O que nos resta como ensino de Lacan provém de alguém que não se 
        arranjou com ela. A ambição desse ensino, aqui presente entre nós, é a 
        de repercutir o traumatismo-Freud. Nessa perspectiva, o que de fato podemos 
        pegar nas malhas de uma dialética são as repercussões de um traumatismo. 
         
        Lacan o disse a propósito do enunciado do real, sob a forma de uma escritura, 
        a dos nós: o enunciado do real sob essa forma “tem o valor de um traumatismo”. 
        Ele o tempera ou explica falando do “forçamento de uma nova escrita”13. 
         
        2. Inconsciente transferencial  
         
        Inconsciente // interpretação 
         
        Aqui está o que dá aos nossos sensatos estudos um dramatismo no qual não 
        conto instalá-los. Prefiro instalá-los na dificuldade visando, tanto quanto 
        me seja possível – em relação a mim, é claro -, balizar o que não passou 
        para a dicência. Para instalá-los, para nos instalar na dificuldade, 
        tomarei o último texto, bem curto, dos Outros escritos14. 
         
         
        Lacan o escreveu imediatamente depois de o Sinthoma - ele é datado 
        de 17 de maio de 1976, ao passo que o Seminário do Sinthoma 
        foi concluído em 11 de maio – e merece ser lido de perto. Eu o apresentarei 
        cuidadosamente a vocês, abrevio quando necessário. Vejam como ecoa a primeira 
        frase desse texto, feita de modo a ir direto ao cerne da questão: “Quando 
        [...] o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), 
        só então temos certeza de estar no inconsciente”15. 
         
         
        Isso pode nos parecer conhecido, pois o valor dos sem-sentido foi, desde 
        sempre, enfatizado e posto em função por Lacan. Todavia, o que essa frase 
        surpreendente comporta - se a observarmos de perto - é a disjunção entre 
        o inconsciente e a interpretação, uma exclusão entre essas duas funções. 
        Digo função no que concerne ao inconsciente, porquanto, nesse mesmo texto, 
        Lacan fala da “função inconsciente”16 
         
        Isso é próprio para fazer vacilar o que acreditamos saber da articulação 
        do inconsciente, visto tratar-se exatamente do avesso, por exemplo, da 
        tese desenvolvida no Seminário 6: o desejo e sua interpretação, 
        segundo a qual “o desejo inconsciente é sua interpretação”.  
         
        No citado texto, pelo contrário, temos de colocar uma dupla barra indicando 
        o corte, a desconexão entre o significante do lapso e o significante da 
        interpretação.  
         
        Significante do lapso // significante da interpretação  
         
        Alcançamos, aqui, em sua junção, o elo entre o famoso S1 e o famoso S2, 
        que são de nossa dicência - significante primeiro, significante 
        segundo –, o mínimo inscritível da cadeia significante acarretando, quando 
        S1 se engancha em S2, que o significante 1 venha a representar o sujeito 
        para o outro significante, o S2. Ora, nessa frase pode ficar imperceptível, 
        por ser colocado na abertura – na abertura desse texto, mas no fechamento 
        do Seminário sobre Joyce -, o fato de ela admitir, se a lermos 
        tal como o faço aqui, que S1 não representa nada, ele não é um significante 
        representativo. Isso ataca o que consideramos como o próprio princípio 
        da operação psicanalítica, uma vez que a psicanálise tem seu ponto de 
        partida no estabelecimento mínimo S1-S2 da transferência. 
         
        Uma transferência-causa  
         
        Aqui, S1-S2 tem uma outra escrita, homóloga, introduzida por Lacan em 
        sua “Proposição sobre o psicanalista da Escola”17. 
         
         
        Para que não nos enganemos, S1 é o significante da transferência em seu 
        laço com S2, um significante qualquer. A fim de fixá-lo, Lacan o escrevia 
        com um q. Isso implica traduzir em termos de significante a relação 
        que se estabelece, que condiciona a operação analítica.  
         
        Desse laço se produz, em posição de significado, sob a barra colocada 
        abaixo do significante da transferência, o famoso sujeito suposto saber. 
         
       
                                S...........Sq  
       
      
       
       
      
                              s (S1, S2, … Sn) 
         
       
        Disso resulta um sujeito. O sujeito resulta do estabelecimento dessa conexão. 
        Sobre esse modo de significado, dizia eu, doravante estará “presente” 
        o saber suposto, o conjunto informando sobre “os significantes no inconsciente” 18. 
        A engrenagem de um significante com o outro deve ser estabelecida para 
        daí resultar um efeito de sentido especial que, desta feita, diga alguma 
        coisa para todo mundo, mesmo sem ser uma expressão especializada. De um 
        jeito ou de outro, todos chegam a lhe dar um sentido sem passar pela dicência 
        lacaniana. E assim são então mobilizados, como dizemos, os significantes 
        no inconsciente. 
         
        Ao longo da análise, o inconsciente toma seu status dessa posição 
        suposta. Sabe-se que Freud conservou para o inconsciente, até o fim, o 
        status de uma hipótese, de todo modo não verificável pelos meios 
        aos quais ele cogitava apelar, a saber, as ciências da natureza. A partir 
        daí, reconhecemos o status do inconsciente como sendo transferencial. 
        Aliás, foi o que me levou a falar, previamente, de inconsciente transferencial19. 
         
         
        A transferência, então, longe de ser efeito do inconsciente, tem, pelo 
        contrário, em tudo o que de Lacan passou para a dicência, muito 
        mais um lugar de causa. É pela transferência que tornamos presente, mobilizamos 
        e lemos o inconsciente. Quando Lacan articula a transferência a partir 
        do sujeito suposto saber, ele a liga estreitamente ao inconsciente, nós 
        o observamos quando o vemos escrever, em “Televisão” : «a relação 
        com o sujeito suposto saber é uma manifestação sintomática do inconsciente 
        ”20. 
         
         
        Conforme essa ótica, podemos dizer que o inconsciente freudiano é o inconsciente 
        transferencial e supõe a ligação entre S1 e S2. Disso decorre a distinção 
        a ser feita, a fim de sabermos onde estamos, entre o sujeito que consiste 
        no saber dos significantes e o sujeito a quem esse saber é suposto. No 
        estado de consistência tem-se, para retomar um termo sartreano, um em-si 
        (en soi), e se poderia imaginar, pelo fato de esse sujeito 
        vir a ser a quem esse saber é suposto, que ele teria o status de 
        para-si (pour soi).  
         
        Saber do si/consigo(soi) sozinho  
         
        Encontraremos novamente esse si/consigo (soi) precisamente porque 
        esta pequena frase do início nega o inconsciente transferencial: temos 
        certeza de estar no inconsciente quando o espaço de um lapso não tem mais 
        nenhum impacto de sentido ou de interpretação. Isso quer dizer: tem-se 
        certeza de estar no inconsciente quando não opera a conexão transferencial. 
        E, assim, Lacan acrescenta à sua abertura – o que é muito pouco lacaniano! 
        Mas ele pode se permitir isso, embora precise ainda de um forçamento para 
        conseguir incluí-lo - um pedaço de frase que incide sobre o “tem-se certeza”: 
        “ sabe-se, consigo (on le sait, soi)”21. 
         
         
        Quem é este si/consigo (soi), este si que 
        sabe que isso não tem nem pé, nem cabeça, nem sentido, nem interpretação? 
        Temos aqui um se (on) que não é, como Lacan pôde articulá-lo, 
        o do inconsciente, mas um se (on) que é si/consigo (soi). 
         
        Cabe ressaltar que nesses pedacinhos de frases de Lacan se trata de um 
        saber do si/consigo (soi) sozinho. Isso não acontece no famoso 
        registro da intersubjetividade, nem mesmo no da inter-significância entre 
        S1-S2, mas instala, desde o início, esse estranho ser cortado, sozinho. 
        É o que se pode verificar na seqüência do texto, permitindo apreender 
        o que Lacan formula, à sua maneira, nas entrelinhas: “ Mas basta prestar 
        atenção para que se saia disso”22 
         
        Não temos aqui o eu (Je ) ou o eu (moi) como sujeitos do 
        verbo. Temos um: “prestar atenção”, que se preste atenção para 
        se sair disso, do inconsciente. A atenção, que nos parece uma propriedade 
        psicológica, toma aqui um valor oposto ao do inconsciente no qual se tem 
        certeza de estar. O que se sabe (ce qu’on sait),consigo (soi), 
        sozinho.  
         
        Verdade mentirosa 
         
        O que é essa atenção incidindo sobre o lapso, para além do saber imediato 
        de que isso não tem sentido nem interpretação? Eu só vejo uma forma de 
        apreender o que é essa atenção, A atenção condiciona a associação. Associamos, 
        eventualmente, à injunção do analista. Mas, aqui, onde ele está? Não o 
        encontramos. Só o encontramos quando nos pomos a prestar atenção. E, de 
        fato, nesse momento, há sentido e há interpretação. 
         
        O que se tentou apreender no espaço de um lapso já lá estava antes que 
        a máquina da atenção, cujo funcionamento tem como pivô o sujeito suposto 
        saber, se pusesse a funcionar. “Restaria, acrescenta Lacan, o fato de 
        eu dizer uma verdade. Não é o caso: eu falho”23. 
         
        Esta palavra, falha (ratage), que realcei numa outra ocasião24, 
        designa aqui o que se obtém pela associação e até mesmo pela famosa intervenção 
        interpretativa do analista. Mas tudo isso falha! Passa ao lado do que 
        havia surgido, o espaço de um lapso. 
         
        Para marcar claramente como é tênue aquilo em que ele se apega - a tenuidade 
        absoluta, o fugidio, o evasivo -, Lacan trunca a expressão “o espaço de 
        um lapso” dizendo: “o esp de um laps”, uma assonância e uma forma de truncar 
        só possíveis em francês, para dizer que ali se tem certeza de estar no 
        inconsciente. E acrescenta algo que ali está como uma repetição para fixar 
        as coisas, uma afirmação valendo como tese: “Não há verdade que, ao passar 
        pela atenção, não minta”25. 
         
         
        Se vocês seguirem o fio que desenrolo a partir desses pequenos fragmentos, 
        ver-se-á estigmatizada ou interrogada a verdade mentirosa da associação 
        livre. Aqui, estamos numa perspectiva em que a associação livre, longe 
        de ser a chave da verdade, libera uma verdade filha da atenção e, desse 
        modo, uma verdade falhada. 
         
        Aqui, considera-se o Um-sozinho como pivô. Nesse texto, há pelo menos 
        duas alusões de Lacan ordenadas a partir desse sozinho. Diz ele: “Não 
        há amizade que esse inconsciente suporte”26. 
         
        Não há amizade que seja o suporte do inconsciente. O que a palavra amizade 
        vem fazer aqui? Ela é a expressão genérica com a qual designamos o laço 
        entre um e outro. Afinal, escandir o espaço de um lapso, solicitar a atenção, 
        poderia passar por um movimento amical, de ajuda à associação livre.  
         
        Nesse texto, porém, a amizade é rechaçada por Lacan. O mesmo acontece, 
        um pouco mais adiante, quando vocês verão Lacan se divertir, como bem 
        o conhecemos - aqui, porém, isso toma um outro valor -, a respeito do 
        amor ao próximo, uma outra figura do laço de um ao outro. 
         
        Do solitário ao par  
         
        Essas duas indicações de Lacan mostram que, aqui, devemos convocar a ficção 
        do Um-sozinho. Dizemos ficção porque estamos na dicência 
        lacaniana ou psicanalítica. Todavia, a situação analítica não nos parece 
        fictícia. De modo especialmente ousado, ao mesmo tempo em que velado pela 
        anedota, Lacan busca a palavra solitário para qualificar a operação 
        freudiana. “Notemos que a psicanálise, desde que ela ex-siste, mudou”27. 
         
         
        Isso é bem conhecido. Acompanhamos os remanejamentos de Freud no que concerne 
        à sua teoria, a primeira e a segunda tópicas, e sabemos que, com Lacan, 
        os remanejamentos foram constantes - mas não é disso que se trata -, e 
        a própria pressão da profissão, seu nome, sua inscrição social, mudaram 
        a análise. O que aqui se visa - é preciso ter o topete de escrevê-lo - 
        é a psicanálise “inventada por um solitário”28. 
         
         
        Todo mundo sabe, hoje, que Freud tudo fez por sua transferência com Fliess. 
        A perspectiva trazida aqui por Lacan apaga o bom Fliess29. 
         
         
        É por essa razão que ele o chama o “teorizador incontestável do inconsciente”30. 
        Esta é uma perspectiva, é claro. Freud prestava atenção – e como! – em 
        seus pequenos espaços de lapso. Mas isso deve ser evocado num outro momento. 
        Precisamos primeiro ser cativados por essa nova figura de Freud, a de 
        um Freud sozinho. Aliás, em seguida, Lacan afasta seus discípulos, 
        que só o eram “pelo fato de ele não ter sabido o que fazia”31. 
        Inconsciente, se quisermos. Portanto, mesmo os discípulos são afastados 
        para deixar apenas o solitário em sua relação com o inconsciente, do qual 
        temos certeza quando não há sentido.  
         
        Desse mesmo modo, Lacan pôde dizer que o real talvez fosse sua resposta 
        sintomática à descoberta de Freud32. 
         
         
        Isso vale para ele sozinho, a tal ponto que ele não tinha certeza de conseguir 
        comunicá-lo. Embora o tivesse inserido durante muitos anos em seus Seminários, 
        distribuídos agora em forma de livros, ele não tinha certeza de seu desdobramento. 
         
         
        Que a “psicanálise inventada por um solitário [...] seja agora praticada 
        aos pares” é uma inovação33. 
        Eis o que desordena, faz sair do que há de engrenado na prática, pois 
        nos pormos a operar em dois aparece como um fato número 2. Nesse sentido, 
        Lacan marca sua posição dizendo: “Sejamos exatos, o solitário nos deu 
        o exemplo”34. 
         
         
        Eis as mudanças: da relação solitária e desatenta com o inconsciente à 
        psicanálise aos pares, operando a partir do sujeito suposto saber, assim 
        como a que se refere à conexão mínima significante aqui desfeita. Não 
        nos esqueçamos: é a isso que Lacan se dedica no final de seu trabalhoso 
        Seminário: o sinthoma. O que valoriza a escolha, entre parênteses, 
        feita por ele, quando fala de Freud como o teorizador incontestável do 
        inconsciente: “(que só é o que se crê – digo: que o inconsciente seja 
        real – caso se acredite em mim)”35. 
         
         
        Eis o que pode nos servir de pequena abertura sobre a presente questão. 
        O inconsciente aqui delineado em filigrana é o inconsciente como real 
        e não o inconsciente como transferencial. O que imanta Lacan no 
        final de seu Seminário é um outro modo, uma outra perspectiva sobre 
        o inconsciente que faz dele real. De algum modo, é o inconsciente como 
        exterior ao sujeito suposto saber, exterior à máquina significante produzindo 
        sentido aos borbotões, por pouco que a deixemos funcionar, conforme acreditamos 
        que somos obrigados a fazê-lo. 
        Esse inconsciente como real é análogo, homólogo ao que evocamos inicialmente 
        do traumatismo. De todo modo, é certamente um inconsciente não transferencial, 
        formulado como um limite. No entanto, Lacan considera esse real como o 
        que mais lhe é próprio na acolhida que reserva à descoberta de Freud. 
         
        Se quisermos recosturar os pedaços aqui dispersados por mim, em sua “Proposição 
        sobre o psicanalista da Escola”36 
        na qual é introduzido o pivô do sujeito suposto saber como condição da 
        psicanálise, Lacan tem o cuidado de notar que o sujeito suposto saber 
        não é real. Aqui, podemos então fazer um jogo entre o inconsciente como 
        real e a operação que o tritura e também o dilui, ou seja, a do sujeito 
        suposto saber.  
         
        3. Urgência 
        O final do texto, tão curto, não é um final qualquer, pois chama a atenção 
        para uma palavra de peso cotidiano, aqui, porém, tendo um peso teórico: 
        a urgência. “Assinalo que, como sempre, os casos de urgência me atrapalhavam 
        enquanto eu escrevia isso”37.  
        O que vale como um testemunho, se quisermos.  
         
        Do que se trata senão de um ponto de partida anterior ao estabelecimento 
        do significante da transferência em sua relação com o significante qualquer? 
        Lacan chama urgência a modalidade temporal que responde à ocorrência 
        ou à inserção de um traumatismo. Ele descarta a situação analítica como 
        sendo feita de um encontro e designa o que chamamos demanda do analisante 
        em potencial como requerimento de uma urgência. A palavra urgência 
        é, para Lacan, o nome do que aparece, do que põe em movimento o requerimento 
        do analisante em potencial.  
         
        Essa palavra urgência aparece também quando Lacan evoca a questão 
        da formação analítica, no texto “Do sujeito enfim em questão”38, 
        em termos anteriores aos de sua “Proposição”. Não consideremos mero acaso 
        o fato de ainda encontrarmos, no final desse texto dedicado à noção de 
        psicanálise didática como condição da formação – Lacan operando remanejamentos 
        sobre sua concepção -, a evocação da urgência. “Agora, pelo menos, podemos 
        nos contentar com a idéia de que, enquanto perdurar um vestígio do que 
        instauramos”- é o momento em que ele está concluindo seus Escritos 
        – “haverá psicanalistas para responder a certas urgências subjetivas, 
        ainda que qualificá-los com o artigo definido fosse dizer demais, 
        ou, mais ainda, desejar demais”39 
         
        Deixo de lado esse ponto em que ele não diz os psicanalistas, mas 
        sim psicanalistas, a fim de enfatizar que a palavra urgência, urgências 
        subjetivas, no caso, é posta como o colofão desse texto para validar 
        que se trata, de fato, da função psicanalítica essencialmente relacionada, 
        antes do começo da análise, com a urgência, ou seja, com a emergência 
        do que faz furo como traumatismo. 
         
        Essa urgência foi também celebrada por Lacan em seu “Relatório de Roma”, 
        no qual a importância desse termo para ele se evidencia, importância que 
        devemos manter. E nós não deixaremos que ela se perca por termos criado, 
        hoje, ainda que minimamente, dispositivos bastante inseridos na sociedade 
        visando tratar a urgência. Esses Centros de urgência devem ser tratados 
        com a dignidade dada por Lacan a esse termo40. 
         
         
        Em seu “Relatório de Roma”, ele o ressaltou:“Nada há de criado que não 
        apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na 
        fala”41. 
         
         
        Temos aqui a ilustração disso, pois essa urgência com a qual devemos fazer 
        par é precisamente o que solicita, no requerente, naquele que faz o requerimento, 
        nele e para ele, a ultrapassagem da fala que é também, na perspectiva 
        desenvolvida aqui, a falha da verdade mentirosa. 
         
        Há ainda um pequeno acréscimo feito por Lacan: “Mas nada há, tampouco, 
        que não se torne contingente nela”42. 
         
        Eis um termo mais técnico que deveremos articular um pouco na seqüência 
        de nossos encontros. Isso já implica em marcar, tal como Lacan se dedicou 
        a fazê-lo de maneira lógica, o que há de não eliminável na função da pressa, 
        a urgência sendo de algum modo a versão terapêutica da pressa. Em tudo 
        aquilo que tem a ver com a verdade há sempre uma precipitação lógica. 
        E basta acrescentar que nos pusemos atentos também à precipitação na mentira, 
        possível de ser veiculada pela verdade. Isso por certo requer uma estratégia 
        da verdade que é, como evoca Lacan em De um Outro ao outro, “a 
        essência da terapêutica”43 
        e, do ponto aonde Lacan nos conduz, cabe apenas acrescentar que essa estratégia 
        da verdade deve dar um lugar à mentira que ela comporta. 
         
        A fim de agitar um pouco a coisa, para mostrá-la palpitante, eu os lançarei 
        na relação que gostaria de estabelecer e os remeterei ao comentário de 
        Lacan sobre a alucinação do Homem dos lobos, tal como ele a situa no início 
        de seu ensino, em conexão com o que delineei, a partir de uma leitura 
        minuciosa, do lugar do real. Com freqüência se lê esse texto relacionando-o 
        com “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”44, 
        texto incidindo sobre aquilo que, uma vez cortado de toda manifestação 
        simbólica, reaparece, diz cuidadosamente Lacan, “erraticamente”45. 
         
        Essas manifestações erráticas do que é cortado da simbolização e que serão, 
        em “O espaço de um lapso”46– 
        texto que vem no final do Seminário sobre Joyce -, valorizadas 
        na psicose, já figuram o que Lacan chamou ‘real sem lei’, ou seja, um 
        real disjunto do simbólico e que o supera. 
         
        Essas considerações desembocam, tal como explicitado nesse último texto 
        de Lacan, no deslocamento ao qual ele submeteu a prova crucial a que chamou 
        passe. Há um mal-estar no passe e nas instituições que primeiro quiseram 
        pôr em marcha essa prova. Desde O sinthoma, de Lacan, é a partir 
        do real que esse mal-estar no passe pode ser a um só tempo situado e superado. 
       
       
         
        Tradução: Vera Avellar Ribeiro  
       
       
       
      1Jacques-Alain 
      Miller é psicanalista, Diretor do Departamento de Psicanálise 
      (Paris VIII). 
      2NT: 
      a palavra “dicência”, sozinha, não existe em português. 
      A fim de mantermos uma proximidade homofônica com o termo disance, 
      optamos por decompor e substantivar o termo “dicência” 
      que entra na composição de alguns vocábulos referentes 
      ao dizer ou à maneira de dizer. 
      3Texto 
      e notas da primeira lição da Orientação lacaniana 
      III, 9 (2006-07) 
      4J-A 
      Miller alude aqui ao fato de não ter dado aula, por três vezes, 
      nos meses de novembro e dezembro de 2005. No entanto, ele veio ao encontro 
      marcado na sala Paul Painlevé, no CNAM, explicando então que 
      preferia calar-se, não queria contornar “essa falha”, 
      essa “dificuldade de falar lacaniano”, preferindo muito mais 
      confrontar-se com ela; não lhe faltava material, mas sim, acrescentou 
      ele, “sua escansão” e o “o ponto de basta” 
      que o tornaria legível.  
      5Damourette, 
      Jacques & Pichon, Édouard, Des mots à la pensée. 
      Essai de grammaire de la langue française (1911-1940), Paris, Edition 
      d’Arthey, 1968, T.I, p. 45-55. 
      6Pichon 
      É., “La famille devant M. Lacan” (1939), Revue française 
      de Psychanalyse, 11, n. 1-2, Paris, 1939, p. 107-135. 
      7Damourette, 
      J. & Pichon, É., Essai de grammaire de la langue française, 
      op.cit., p. 45. 
      8Ibid., 
      p. 46. 
      9Cf., 
      Miller, J-A, “Introdução à leitura do Seminário: 
      De um Outro ao outro” (2005-06), La Cause freudienne n. 64, Paris, 
      Seuil/Navarin, 2006, pp. 137-169, e n/s. 65 & 66, a serem publicados 
      em 2007. 
      10Lacan, 
      J., Le Séminaire, livre XXIII, Le Sinthome (1975-76), Paris, Seuil, 
      2005, p.132. 
      11Ibid. 
      12Cf. 
      Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa 
      do Seminário XI” (1972), Outros escritos, Rio de Janeiro, J. 
      Zahar ed., 2003, p. 567.  
      13Cf. 
      Lacan, J., Le Séminaire Le sinthome, op.cit., p 130-131 
      14Lacan, 
      J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 
      XI”, op.cit, p. 567 
      15 
      Ibid., p. 567 
      16Ibid., 
      p. 568 
      17Lacan, 
      J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista 
      da Escola” (1967), Autres écrits, p.cit., p. 248. 
      18Ibid. 
      19Miller, 
      J-A, “Notre sujet suppose savoir. Présentation du theme des 
      Journées d’études 2007”(2006), La lettre mensuelle 
      n. 254, janeiro de 2007 
      20Lacan, 
      J., “Televisão”, Autres écrits, op.cit., p. 543 
      21Lacan, 
      J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 
      XI”, op.cit., p. 567 
      22Ibid. 
      23Ibid. 
       
      24Cf. 
      Miller, J-A., Orientação lacaniana III, I (1998-99). 
      25Ibid. 
      26Ibid. 
      27Ibid. 
      28Ibid. 
      29Aqui, 
      J-A Miller remete à recente publicação em francês 
      das Cartas a Wilhem Fliess (edição completa), de S Freud, 
      Paris, PUF, 2006; ele especifica que “a evocação feita 
      por Lacan de Freud como solitário vem bem a calhar”.  
      30Lacan, 
      J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 
      XI”, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 2003, p. 567. 
      31Ibid. 
      32Cf. 
      Lacan, J., Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome. Paris, Seuil, 
      2005, p. 132 
      33Ibid. 
      34Ibid 
      35Ibid. 
      36Cf. 
      Lacan, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre 
      o psicanalista da Escola”, op. cit. 
      37Lacan, 
      J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 
      XI”, op. cit. 
      38Laca, 
      J., “Do sujeito enfim em questão” (1966), Escritos, Rio 
      de Janeiro, J. Zahar ed., 1998, p. 229 
      39Ibid, 
      p 237 
      40J-A 
      Miller fala dos CPCT criados pela Escola da Causa freudiana e por outras 
      Escolas da Associação Mundial de psicanálise. 
      41Lacan, 
      J., “Função e campo da fala e da linguagem”(1953), 
      Escritos, op.cit., p 242. 
      42Ibid. 
      43Lacan, 
      J., De um Outro ao outro, op.cit., p 19 
      44Lacan, 
      J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível 
      da psicose” (1958), Escritos, Rio de Janeiro, J. Zahar ed., 1998, 
      p. 537. 
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