Tradição e Nome do Pai 1

Angelina Harari2

angelina.harari@terra.com.br

Resumo: A partir da afirmação do cronista Arnaldo Jábor de que o carnaval é uma festa feminina, a autora traça a equivalência entre os termos Tradição e Nome do Pai. Pontua que ambos têm referência na doutrina religiosa. A seu ver, atrelar o termo Tradição a um Nome-do-Pai, entre outros, permite desvincular a Tradição de seu aspecto religioso e ordená-la do lado feminino como acontece no carnaval brasileiro.
Palavras chave: Tradição; Nome-do-Pai; feminino.
Abstract: From journalist Arnaldo Jabor’s statement, according to which carnival is a feminine festivity, the author traces the equivalence between the terms Tradition and Name-of-the-father. She points out that both refer to religious doctrine. In her opinion, attaching the term tradition to any name-of-the-father allows separating tradition from its religious aspect and keeps it on a feminine side as to what happens in Brazilian carnival.
Key words: Tradition; Name-of-the-father; feminine

I – Um texto precursor.

Começaremos traçando a equivalência dos termos tradição e Nome do Pai, levando em conta que, por um lado, uma das acepções do termo tradição refere ao que é transmitido: “(…) o que em uma sociedade, pequena ou grande, e particularmente em uma religião se transmite de uma maneira viva, seja pela palavra, seja pela escrita, seja pelas maneiras de agir.”3 e por outro, sabidamente Lacan reconhece o empréstimo tomado da religião do termo Nome do Pai, introduzido por ele na psicanálise.

Tradição e Nome do Pai têm como referente a doutrina religiosa. Assim, encontramos no artigo “De uma questão Preliminar…” que “ a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome do Pai.”4
Não nos interessa aqui o recenseamento das evocações de Lacan a respeito da relação entre o Nome do Pai e a religião, ou seja, a forma como enlaça os dois termos desde o artigo considerado inaugural “Função e campo da fala e da Linguagem” até a aula do Seminário Inexistente, termo cunhado por J-A Miller para designar a aula inaugural do Seminário sobre Os Nomes do Pai que, ao ser excomungado da IPA, Lacan interrompe.
De várias formas menciona ao longo de seu ensino tal interrupção, no intuito sempre de questionar a partir daí o que resta da religião na psicanálise, especificamente o que da tradição religiosa segue atrelada ao Nome do Pai, usado até então como princípio de método que repercute em toda condução de análise.5
A transição do Nome do Pai, no singular, aos Nomes do Pai, no plural, presente no título do Seminário interrompido por Lacan, em novembro de 1963, designa a passagem da religião à lógica, do Nome do Pai da religião aos Nomes do Pai como operação lógica. A interrupção do Seminário dá margem à interpretação de um castigo por ter tocado no pai construído por Freud, evidenciando a ruptura com uma certa tradição religiosa.
Multiplicar o Nome do Pai significa que o Pai é um Nome do Pai entre outros, e que a Mulher pode ser um Nome do Pai. Neste contexto, interessa-nos introduzir uma articulação possível entre Tradição e um Nome do Pai entre outros. Para tanto utilizarei como exemplo de tradição, no sentido do que “em uma sociedade (…) se transmite de uma maneira viva (…)”, o carnaval como festa popular coletiva que se transmite na sociedade brasileira.7 Atrelar o termo Tradição a de um Nome do Pai entre outros permite desvincular a Tradição de seu aspecto religioso, e ao mesmo tempo ordená-la do lado feminino que é o que o acontece no carnaval brasileiro.


Começaremos traçando a equivalência dos termos tradição e Nome do Pai, levando em conta que, por um lado, uma das acepções do termo tradição refere ao que é transmitido: “(…) o que em uma sociedade, pequena ou grande, e particularmente em uma religião se transmite de uma maneira viva, seja pela palavra, seja pela escrita, seja pelas maneiras de agir.”3 e por outro, sabidamente Lacan reconhece o empréstimo tomado da religião do termo Nome do Pai, introduzido por ele na psicanálise.

Tradição e Nome do Pai têm como referente a doutrina religiosa. Assim, encontramos no artigo “De uma questão Preliminar…” que “ a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome do Pai.”4

Não nos interessa aqui o recenseamento das evocações de Lacan a respeito da relação entre o Nome do Pai e a religião, ou seja, a forma como enlaça os dois termos desde o artigo considerado inaugural “Função e campo da fala e da Linguagem” até a aula do Seminário Inexistente, termo cunhado por J-A Miller para designar a aula inaugural do Seminário sobre Os Nomes do Pai que, ao ser excomungado da IPA, Lacan interrompe.

De várias formas menciona ao longo de seu ensino tal interrupção, no intuito sempre de questionar a partir daí o que resta da religião na psicanálise, especificamente o que da tradição religiosa segue atrelada ao Nome do Pai, usado até então como princípio de método que repercute em toda condução de análise.5

A transição do Nome do Pai, no singular, aos Nomes do Pai, no plural, presente no título do Seminário interrompido por Lacan, em novembro de 1963, designa a passagem da religião à lógica, do Nome do Pai da religião aos Nomes do Pai como operação lógica. A interrupção do Seminário dá margem à interpretação de um castigo por ter tocado no pai construído por Freud, evidenciando a ruptura com uma certa tradição religiosa.

Multiplicar o Nome do Pai significa que o Pai é um Nome do Pai entre outros, e que a Mulher pode ser um Nome do Pai. Neste contexto, interessa-nos introduzir uma articulação possível entre Tradição e um Nome do Pai entre outros.6 Para tanto utilizarei como exemplo de tradição, no sentido do que “em uma sociedade (…) se transmite de uma maneira viva (…)”, o carnaval como festa popular coletiva que se transmite na sociedade brasileira.7 Atrelar o termo Tradição a de um Nome do Pai entre outros permite desvincular a Tradição de seu aspecto religioso, e ao mesmo tempo ordená-la do lado feminino que é o que o acontece no carnaval brasileiro.

Pode-se então seguir a idéia, que propõe um cronista, em fevereiro de 2005, do carnaval ser uma festa feminina. Por um lado Tradição e, por outro, o feminino do carnaval como um Nome do Pai entre outros[8]. Vejamos como o cronista expõe a lógica argumentativa em torno do feminino. Começa comentando a tradicional presença no desfile de mulheres provocantes e cita o exemplo, de uma vedete, Elvira Pagã (nome, segundo ele, anticristão e nu), em 1950, desfilando completamente nua na proa de um imenso carro alegórico pela Avenida Rio Branco, precursora corajosa de todas as mulheres nuas. No carnaval vemos o inconsciente cultural (será que esta expressão é justa? Não seria melhor pôr simplesmente o inconsciente?) à flor da carne, o que levou o cronista a concluir que quanto mais civilizado o país, mais fundo é o recalque. As surubas calvinistas de Nova York, onde inventaram o sexo torturado nas boates doentias e acabaram no cultivo da AIDS, são diferentes da sacanagem brasileira que é do fundo das matas, sem culpa, indígena e africana. Prossegue sua idéia do feminino afirmando: “Comparando com a alegria do mundo rico, o nosso carnaval é feminino, enquanto o rock é de homem. O rock é guerra; o carnaval é luxo e volúpia. No carnaval, os homens querem virar mulheres. Todos querem ser tudo; os homens querem ter seios e fecundidade e as mulheres querem ser sedutoras máquinas de excitar pênis dançantes. (…) a grande tradição do carnaval está mais presente nos blocos dos foliões anônimos. Nas ruas os blocos dos anjos de cara suja, os blocos das escrotas, dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre. Podemos ver nas ruas a preciosa origem do carnaval profundo. Lá estão os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. Só os sujos são santos.”9

Um Nome do Pai entre outros é o resultado do furo da metáfora paterna que Lacan efetua. J-A Miller localiza esta noção no prefácio escrito para “O Despertar da Primavera” de Wedekind: “(…) é possível que o pai seja tão somente um dos nomes da deusa materna, a Deusa Branca, que permanece outra em seu gozo.”10 Lacan fura a metáfora paterna para chegar ao desejo da mãe e ao gozo suplementar da mulher.11 A noção do carnaval como festa feminina pareceu-nos exemplar para designar que, na data anual programada pelo calendário e anexada ao calendário religioso (o carnaval antecede a Quaresma), um furo acontece no programa cultural do machismo, um furo tradicional. A fixação do período momesco gira em torno de datas predeterminadas pela própria igreja, festa de características pagãs que termina em penitência, na dor de Quarta-feira de Cinzas.12

Na segunda metáfora paterna, nos diz Éric Laurent, o Outro da linguagem encarrega-se do enlaçamento com a pluralização dos Nomes do Pai. (…) O paganismo contemporâneo busca a prova da existência de Deus na overdose. Com apresença do ex-tase nele, o sujeito moderno comprova a presença do Outro, passa então a acreditar.13

A topologia do nó borromeano que Lacan introduziu em Mais, Ainda (1970) serve-lhe para reformular o conceito de estrutura através das categorias real, simbólico e imaginário, únicas categorias da experiência analítica. Estrutura reformulada em cujo centro localiza o objeto a, referência de um novo tipo, nascida da própria articulação. Não se trata mais da idéia de referência negativa, a qual Lacan leva em conta, a partir da estrutura de linguagem, a importância pivô da castração freudiana.14 Como conseqüência o status do Outro sofre deslocamento. Não se trata mais da dialética sujeito/outro, torna-se um conceito organizado em torno de um núcleo, um vacúolo de gozo. O que fundamenta sua alteridade é o objeto a, resto não simbolizado da Coisa. O objeto a não se constitui em elemento do Outro, aloja-se nele em um ponto de extimidade: porquanto intimo não lhe é menos heterogêneo. A esta falta estrutural do Outro, corresponde a pluralização dos Nomes do Pai como suplências, não há uma única forma de tapar a falta.15

Lacan avança ainda mais postulando o conceito de alíngua, como um simbólico desligado do Outro e tendo o Um como referência.

A psicose fornece o modelo do núcleo real de todo sintoma: como função da letra que fixa o gozo, sem Outro.

E quanto à conclusão da crônica do carnaval: “Ali, nas ruas sujas estão as três raças brasileiras entrelaçadas na esperança de um casamento grupal doido: negros, brancos e índios dando à luz um grande bebê mestiço e gargalhante, ensinando que a vida é uma arte e a lógica careta é a morte.”16

1Texto publicado originalmente em Scilicet dos Nomes do Pai. Textos preparatórios para o Congresso de Roma, 13 a 17 de julho de 2006. AMP.
2AME da Escola Brasileira de Psicanálise – EBP.
3Lalande, A. (1972). Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, (pp. 140-1). Paris: PUF.
4Lacan, J. (1998). De uma questão Preliminar, In Escritos (p.562).Rio de Janeiro: Zahar.
5Idem. (1998). Função e Campo da Fala e da Linguagem. Op.cit (pp. 279-80).
6Miller, J-A. (1992). Comentário do Seminário Inexistente (p.20). Buenos Aires: Manantial.
7Lalande, A. ibidem.
8Jabor, A. (2005, 8 de fevereiro). O Estado de São Paulo.
9Idem, ibidem.
10Lacan, J. (2003). Prefácio a ‘O Despertar da Primavera’ de Wedekind. In Outros Escritos (p.559). Rio de Janeiro: Zahar.
11Miller, J.-A. (maio de 2004). Religião, Psicanálise. Opção Lacaniana, 39, 24. [originalmente publicada em La Cause freudienne, 55 .Textos e notas estabelecidos por Catherine Bonningue]
12Site Web:http://geocities.com/aochiadobrasil/historia/historiadocarnaval.htm
13Laurent, É. (2004). La sociedad del sintoma. Revista Lacaniana de Psicoanálisis, 2. Buenos Aires: Altamira.
14Miller, J-A. (1994). Matemas, ( p.195). Rio de Janeiro: Zahar.
15Skriabine, P. La clínica del nudo borromeano. In Locura: Clínica y Suplencia, (p.86). Madrid: Eolia Dor, S,L.
16Jabor, A. ibidem.